sábado, 29 de setembro de 2007

Reflexão em Dó Maior


Sábado à noite. Chove lá fora. Não me apetece ir ao Be Jazz e, por isso, fico em casa a procurar no meio dos dê-vê-dês, um que ainda não tenha visto. Encontro o "Diana Krall live in Paris". Abro uma Carlsberg e sento-me no sofá. Ordeno ao aparelho que comece a tocar. Vou-me apercebendo a pouco e pouco que tinha um tesouro perdido no meio do monte de discos que ocupa o lado esquerdo da televisão. Há tesouros que andam perdidos até que um dia de chuva nos dá motivo para os procurarmos.

A música ajuda-me a abstrair-me e a colocar as ideias em ordem. Há uma coerência matemática que apenas se pode encontrar na música e que ajuda a sintonizar o aparelho complexo a que chamamos cérebro. Dou por mim a relembrar os momentos da semana, a associar pequenos pormenores que, na altura, não me pareceram importantes. Começo a refazer a imagem mental de certos eventos e da sua importância na ordem das coisas. Acabo por decifrar a lógica das acções e dos planos de algumas pessoas que conheço bem e de outras que conheço assim-assim. Verifico lentamente a relação das coisas e apercebo-me das intenções deste e daquele, dos planos de fulano e de sicrano, dos objectivos misteriosos de A e de B. Chega-me a sensação de que há uma relação oculta entre as acções de certas pessoas que não deviam estar a colaborar, mas afinal, seguem um mesmo desígnio que no final, levará a que os objectivos de ambos se cumpram como combinado antes de uma separação aparentemente brutal, mas que, por falta de testemunhas à excepção dos próprios, parece-me agora como uma peça de Nô: Faces ocultas sob uma camada grossa de maquilhagem que desfilam numa história que obriga aos próprios e a quem os observa a possuir uma heróica quantidade de oriental paciência para perceber o que estão a fazer e entender o significado da farsa.

Chega-me o som da voz límpida e poderosa de uma Diana Canadiana a cantar um Devil May Care delicioso. Aparecem-me imagens de desportos radicais, onde vejo paraquedistas e malabaristas a lançarem-se contra alpinistas e surfistas. Devil may care, penso eu, I got you under my skin, percebo onde queria chegar o amigo com quem estive a falar na quarta-feira, Let's face the music and dance, concluo.

Já tive a oportunidade de ver um espectáculo da Diana Krall em Lisboa. O vídeo digital faz-me voltar à memória os amigos e os amores que tinha antes, nesse dia que já tinha esquecido, busco na memória os actuais. Não mudaram muito, se fizesse uma lista daquele dia e deste, verificaria apenas a diferença de uns poucos nomes. Dou por mim a pensar nos amigos de quem estou afastdo pelo tempo e pela distância e se haverá um dia em que nos reencontraremos a todos, os que cá estão e os que já partiram, em algum universo paralelo. Os paralelos asfixiam a alma, dizia o Manuel João Vieira, e é verdade. Amigos há que partilham a nossa intimidade e depois, na coisa pública, por conveniência de imagem, procuram manter uma certa distância, para que as coisas não pareçam esquisitas aos olhos daqueles que têm de servir, outros, pelo contrário, não sendo amigos, aproximam-se, esperando que na hora de partir o bolo, caia alguma migalha da nossa mesa. Há migalhas que caiem de pára-quedas, outras atiram-se para o chão atadas a uma corda elástica, voltando para cima mesmo antes de cair onde possam ser apanhadas. São as migalhas Bungee, que se parecem muito com cenouras.

All or nothing at all, tudo ou nada, canta a Diana Canadiana. Notting Hill ou Rua Marquês de Pombal, penso eu. Notting Hill, o do filme, fica mesmo ao fim da Portobello Road, e foi nesta rua que, de um pequeno beco, fizeram o cenário para a livraria de que o proprietário é o Hugh Grant. Andei por lá com o meu sobrinho, à procura da coisa, disseram-nos que não estava lá, era só cenário. Assim é. A maior parte das coisas que não são reais parecem, pelo menos uma vez na vida, verdadeiras. Ainda que não existam, parecem ter substância, mas são como as miragens no deserto, só existem porque o calor nos tira a percepção da realidade. Penso que é por isso que não existe pecado do lado de baixo do Equador. East of the Sun, West of the Moon.

Todas as verdades se baseiam na percepção. O mundo é o que dele fazemos. Uma mentira repetida até à exaustão torna-se "A Verdade". Os nossos amigos são a nossa verdade, é disso que me apercebo. Se formos verdadeiros amigos, construímos a nossa própria verdade, quando nos afastamos ela desmorona como um baralho de cartas. A "verdade" é uma ilusão colectiva sustentada por uma comunidade que não duvida de qualquer um dos seus membros.

I don't know enough about you, canta a Diana Canadiana, e, por isso, dou por mim a duvidar e a refazer filmes antigos, com protagonistas que já não existem e a verificar que, de facto, os paralelos asfixiam a alma. Ajudei, em tempos, por amizade, simpatia e dó maior, um grande senhor, dono de um passado glorioso, a sentir-se uma autêntica estrela pop, apesar de o seu brilho já ter passado e não haver forma de voltar atrás para emendar os erros cometidos. Let´s face the music and dance, é a música de bónus do dê-vê-dê. Está tudo à vista na nossa realidade que é composta de verdades que se acumulam em camadas e que a música nos ajuda a suportar e a decifrar, ainda que ninguém nos perceba ou queira aceitar as nossas revelações quando levantamos a ponta do véu.

It´s wonderfull, acabei de ver um Luís Filipe a ser eleito mais ou menos pelo mesmo método que um outro, tempos atrás, e dou por mim a pensar se também este seguirá as pegadas do seu precursor. Pelo menos já apela à união do partido, reparem bem: união do partido. UNIÃO... do ... PARTIDO! Esta frase faz algum sentido? Faz lembrar um anuncio da Carglass, lider na substituição do partido. Convenhamos que, nestas coisas de política, um partido unido, seja por que método fôr: cola, amálgama ou fusão, não deixa de ser um partido remendado, nos dois primeiros casos, ou uma liga com propriedades diferentes dos elementos constituintes, no último caso. Um partido unido é sempre algo de estranho, é como um começo acabado ou uma corrida parada. É que a vida dos partidos também se faz de alternância, aliás, a alternância, como a verdade, também se faz por camadas, e é por isso que tem de haver sempre alguém a ficar de fora.

Os paralelos asfixiam a alma, hoje à tarde vi um Presidente a repetir exactamente o mesmo discurso que criticava no seu antecessor, alternância, digo eu, verdade por camadas, enterra-se a verdade de ontem sob a nova camada de verdade que criamos hoje, mas não faz mal, quem devia levantar a ponta do véu não estava lá, estava entretido a tecer a sua própria verdade noutro lado qualquer. O disco acabou, não tenho paciência para ver o material de bónus, que é o ensaio para o conserto, demora tempo demais. Se fosse coisa rápida talvez perdesse o meu tempo, assim, não sei, talvez seja mais fácil tirar o dê-vê-dê do aparelho e colocar lá outro.

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