quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Ainda hei de ser um bufo

Hoje abri o Diário Digital e fui confrontado com duas notícias que me alarmaram, numa dava-se conta de que o Juiz Helder Fráguas tinha sido suspenso por alegadamente ter escrito num blog "linguagem obscena e imprópria", na outra, fiquei a saber que graças à Fundação para a Computação Científica Portuguesa, "Portugal terá um site para denunciar conteúdos ilegais".

Fiquei em estado de choque.

Em primeiro lugar porque sou um dos leitores regulares das contribuições cibernáuticas do Meretíssimo Juiz Helder Fráguas, nas quais, devo dizer, nunca encontrei nada para além de uma cuidada utilização da linguagem por forma a descrever alguns casos curiosos que vão perpassando pela justiça portuguesa. Nunca li nos espaços geridos por este senhor, nada que se assemelhasse a conteúdos obscenos ou impróprios da sua condição de magistrado. E acreditem em mim, porque de conteúdos obscenos e impróprios percebo tanto como qualquer cidadão deste país que tenha já pegado no jornal "Tal&Qual" ou assistido a algumas peças jornalísticas que passam na televisão pública.

Em segundo lugar porque as duas notícias, associadas à moda que anda a percorrer a comunicação social de culpar a internet de todos os males do mundo, da bulimia à transmissão de imagens chocantes, passando por todo o tipo de desvios da juventude para toda a espécie de perversões, me fizeram lembrar uma coisa. E essa coisa só tem um nome, CENSURA.

Ao de leve pensei que isto poderia ser causado pelo receio que os patrões dos média têm da internet e dos prejuízos que este instrumento causa ao seu negócio e às suas influências. Depois, pensei no que teria acontecido no tempo do escândalo Taveira se já houvesse internet, teriam conseguido abafar as coisas como fizeram na altura?

Várias reflexões me assaltaram, até o facto de, na mesma notícia em que li a história do Juiz Fráguas, vir um parágrafo mais abaixo, do qual ninguém falou na TSF quando deram a notícia às 8 da manhã, todos entusiasmados. No parágrafo abaixo vinha o nome de um outro Juiz, muito mais mediático, o Juiz Rui Rangel, que vou passar a transcrever.

"O órgão de gestão e disciplina dos juízes deliberou ainda por maioria instaurar um processo disciplinar ao juiz desembargador Rui Rangel devido a um artigo publicado num jornal diário relativo ao «caso Esmeralda», relacionado com a disputa do poder paternal de uma criança de 5 anos que envolve o militar Luís Gomes e o pai biológico.

Este inquérito disciplinar a Rui Rangel destina-se a apurar se este juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa violou ou não o «dever de reserva» que deriva do estatuto dos magistrados e os impede de comentar processos judiciais em concreto.

Segundo a mesma fonte, a decisão de abrir um inquérito disciplinara Rui Rangel não foi pacífico no seio do CSM, levando a uma discussão sobre os limites impostos pelo dever de reserva.

A fonte acrescentou que o assunto revelou-se particularmente sensível tanto mais que o antigo ministro da Justiça, Laborinho Lúcio, que é vogal do CSM, fez alguns comentários públicos sobre o «caso Esmeralda», embora dizendo sempre não se querer alongar."

O mais estranho deste caso é que a notícia sobre o Juíz Fráguas, que é muito menos conhecido que o Juíz Desembargador Rangel, vinha em destaque, e ainda por cima num parágrafo cheio de dados errados, como se tivesse sido atamancada à última da hora para esconder o que vinha por baixo. Por exemplo, referia que Fráguas é Juíz no Tribunal do Barreiro, o que sabemos ser errado. A mesma notícia foi corrigida, também de modo atamancado, com erros ortográficos e tudo, esta madrugada, cerca das 3 da manhã.

Não quero com isto insinuar que a história do Juíz Fráguas tenha sido usada como cortina de fumo para esconder o incómodo que a notícia muito mais ponderosa sobre o Juíz Rangel teria causado ao próprio, ao Conselho Superior de Magistratura e até a alguns patrões da Comunicação Social. Mas é o que parece.

Fui um pouco mais longe e telefonei a um amigo que me afiançou que no despacho que suspendia preventivamente o Juiz Fráguas, não vinha qualquer menção a obscenidades, apenas a linguagem excessiva. Digam-me lá os senhores como é que se descreve um crime violento sem usar linguagem escessiva, sabem? Eu também não. Mas também me afiançou que o caso do Juíz Fráguas já tinha para ai uma semana e não havia razão nenhuma para sair hoje nas primeiras páginas. Se estou aqui a quebrar algum segredo de justiça, asseguro-vos que é sem intenção, apenas ouvi dizer, não li autos nem processos, já nem me lembro a quem é que telefonei.

Mas a notícia do tal site especializado na segurança online continuava a perturbar-me. Dizem-me que a partir de Maio, vamos ter um site onde poderemos denunciar conteúdos ilegais na Internet. De acordo com o masmo diário:

"No site a ser criado, «jovens e adultos vão poder denunciar conteúdos pedófilos, de violência extrema ou xenófobos, e outros que alegadamente constituam crimes públicos», disse à agência Lusa Lino Santos, da direcção técnica da FCCN."

O que me perturbou foi aquele "outros que alegadamente constituem crimes públicos", porque não estou a ver bem o que é, mas cheira-me a que alguém vai poder controlar o que podemos ou não dizer na internet, e isso preocupa-me, porque eu gosto particularmente de dizer o que me apetece, desde que tenha o devido fundamento.

E crimes públicos pode muito bem ser a emissão de obscenidades verbais num espaço de acesso público, como é o caso da internet, e com as conclusões que tirei da história acima, percebi que o conceito de obscenidade ou linguagem excessiva pode ser muito abstrato.

Mas fiquei a saber mais:

"«As denúncias feitas no site vão primeiro ser tratadas junto de operadores especializados - que farão uma primeira triagem - para verificar se realmente se trata de conteúdos ilegais e determinar a origem do conteúdo», adiantou o especialista.

«Se os conteúdos ilegais forem portugueses, a denúncia será comunicada de imediato às autoridades nacionais. Se os conteúdos forem oriundos, por exemplo, de um servidor na Alemanha, a hotline portuguesa [que está ligada à rede europeia] contacta a rede alemã para que esta faça a denúncia às autoridades daquele país», acrescentou."

E comecei a lembrar-me de um livro absolutamente kafkiano da autoria de João Aguiar, que se chama "O Jardim das Delícias", que conta a história de uma Europa onde já não existe liberdade de informação, um 1984 dos nossos dias e à portuguesa, que vale a pena ler. (João, tinhas razão).

Quer dizer, se eles estão disponíveis para receber queixas, alguém vai ter de se queixar. O que pensei, cá para mim, deixou-me descansadinho:

-Não faz mal, se pagarem bem, ainda hei de ser um bufo!


Pedro Estadão

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