domingo, 4 de fevereiro de 2007

Na sexta, foi à ópera no Barreiro?

Nove e meia da noite no Auditório Municipal, sobe o pano, à nossa frente um cenário despido de adereços.
Ao fundo, um pano preto e nove cadeiras, à esquerda um piano de cauda. Entra o elenco. Todos vestidos de negro. Descaracterizados, à excepção dos obrigatórios toques de maquilhagem.

Surpresa. A pianista Vera Prokic ergue um CD e leva-o até à aparelhagem. Toca a Abertura uma qualquer orquestra num espaço e tempo distante, artificial. Mas a abertura , na ópera, é obrigatória, e quem não tem espaço para uma orquestra faz como o Mantorras:
resolve.

E resolveu muito bem. Enquanto toca a abertura, os actores desenham o espaço imaginário onde se vai passar a história, reinventando o espaço vazio com a construção de uma área imaginária que separa o real do sonho.

Acaba a abertura e tudo se transfigura. O que se vê e ouve a partir deste momento é um espectáculo de trapézio sem rede. Ópera sem suporte orquestral, o maior desafio técnico que um grupo de cantores pode enfrentar, mas está lá o piano, Mozart muito bem trabalhado por uma pianista que se percebe ter uma formação sólida e uma grande empatia com o resto do elenco, neste Don Giovanni, o piano é que conta a história.

O enredo avança normalmente até uma ária do Catálogo que começa a aquecer a audiência. Um Leporello jovem que faz nesta representação uma interpretação inolvidável na forma como se desembaraça da dificuldade técnica de não ter o suporte de uma orquestra. Rui Silva, o Baixo que dá vida a este Leporello, enche-nos de esperança no que está para vir, é a partir do Catálogo que a história se solidifica e o despojamento de cenário e argumentos deixa de ter importância.

O que se ouve a partir dai é o desfilar de um elenco muito acima da média, onde se destaca Ana Moreira, perfeita na sua interpretação de Dona Anna. Carla Simões dá cartas no papel de Zerlina, mais uma jovem que promete um grande futuro.

Manuel Pedro Nunes conquista a audiência com a coerência da sua interpretação e com um final fabuloso, no jantar de Don Giovanni (MPN), com a estátua do Comendador, interpretado por Nuno de Villalonga, que consegue surpreender pela positiva e corresponder à expectativa, afinal de contas, a breve passagem do Comendador por uma ópera que dura duas horas e meia é um dos trechos musicais mais conhecidos no mundo, seria fácil falhar.

Tudo acaba bem: Dez minutos de aplausos de pé para uma casa que podia e devia estar mais cheia. A actuação foi um sucesso e a qualidade geral foi de deixar qualquer melómano boquiaberto.

Da minha parte, dou os meus parabéns ao encenador, Gonçalo Portela, que conseguiu do nada fazer tudo. Ao Manuel Pedro, de quem prezo a amizade, peço-lhe mais.
À Câmara Municipal do Barreiro não desculpo a falta de divulgação deste evento e o facto de só termos tido a oportunidade de assistir a este espectáculo numa sessão única, que aconteceu neste dia 2 de Fevereiro, no AMAC.

Hoje, fez-se ópera no Barreiro e eu sou um homem feliz.

Este texto foi publicado no Rostos OnLine a 3/2/2007 com o título "Um Don Giovanni sem falhas"

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